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A principal vocação do cinema americano atual é o comércio...alguém tem dúvida disso?...eu não. Apesar disso, eles estão cultuando nos últimos anos umas produções estilo “sujinho”, com roteiros mais críticos (inclusive ao american way life), visões documentaristas e personagens mais complexos. É o caso de “Pequena miss sunshine” de Jonathan Dayton e Valerie Faris , “Juno” de Jason Reitman e agora de “Preciosa” de Lee Daniels que no Brasil ganhou o subtítulo meloso “Uma história de esperança”...arrrgh!
Tenho que assumir que eles fazem esse cinema “sujinho” muito bem, todos os filmes citados acima estão entre os melhores dos últimos anos. E eu os chamo aqui de “sujinhos” porque eles dispensam aqueles cenários e personagens limpos e certinhos das comédias românticas e os heróis destemidos dos blockbusters e se dedicam a tipos mais humanos, deslocados e reais, na verdade, anti-heróis da nossa sociedade, personagens que nos cativam não por serem exemplos irreparáveis de ética e postura, mas pela forma que enfrentam as condições da vida e se superam, como a menina gordinha de “Pequena missa sunshine”, a adolescente bem resolvida com pais despreparados de “Juno” e a infeliz e sofredora garota de “Preciosa”.
“Preciosa” é um daqueles filmes que você termina pensando: “ah, como minha vida é maravilhiosa!” tamanhas são as desgraças que existem na vida da adolescente Preciosa.Basta adiantar aqui que além de ser miserável, obesa e analfabeta aos 17 anos, ela ainda é molestada pelo pai que lhe gera dois filhos, e sua mãe, ao invés de ajudá-la, a maltrata e cria uma relação baseada em ciúme e opressão.
Mas, como combinado, vamos em partes:
Direção:Lee Daniels é uma das figuras mais fortes do cinema negro norte americano. Tem uma postura quase militante quanto as questões que envolvem as minorias negras e “Preciosa” pode ser entendido como sua obra-prima no que se refere ao tema “minoria negra oprimida na América”. Antes disso ele só dirigiu um filme, chamado “Matadores de aluguel” , que não teve muita expressão e eu nem sequer assisti. Mas produziu “A última ceia” de Marc Forster que rendeu o Oscar de atriz a uma mulher negra pela primeita vez na história, Halle Berry.
Em “Preciosa”, ele se utiliza de todos os elementos do estilo filme de gueto, incluindo o ambiente decadente e marginalizado e as gírias excessivas dos negros. Mas tudo com coerência,uma vez que o filme tem esse caráter de manifesto, de denúncia ao establishment. Ele mantém um tom documentarista, uma câmera que se aproxima e se afasta do personagens como se estivesse tentando encontrar o melhor modo de captá-los, sejam eles os negros do Harlem ou os assistentes sociais e educadores. Lee deixa espaço para os atores fazerem o que precisa ser feito, não recheia a tela de imagens desnecessárias e panfletárias, não explora demasiadamente a fotografia, deixando a narrativa enxuta, sem frivolidades. Acho isso muito positivo e gosto particularmente de como ele estabelece o paralelo entre a realidade dura da protagonista e suas fantasias, como ser uma loira perfeita no espelho ou uma celebridade em seus sonhos. E desgosto daquela auto-projeção que ela faz dentro de um filme italiano. Que bobo aquilo, não acrescenta nada e fica meio piegas.
Roteiro
A história é baseada no livro “Push” da poetisa Saphire, baseado em fatos reais presenciados por ela em instituições sociais americanas. A partir disso, o roteiro de Geoffrey Fletcher parece cumprir seu intuito que, mais que mostrar a condição dos negros pobres nos EUA, como enfatiza o diretor, tenta deflagrar a condição ineficiente da assistência social do país e ilustrar a alienação moral que a sociedade se encontra, com mães psicóticas em frente a TV e adolescentes que acreditam em fama e red carpet como salvação da vida. O roteiro não poupa o espectador, é cruel, ríspido e não cai no melodrama barato. O texto é rico de sentimentos, evita chavões e clichês e consegue seu objetivo que é dar uma alerta geral para o que existe por trás da beleza americana e ainda deixar a todos com uma sensação de nojo e repúdio ao sistema. Muito bom.
ElencoChegamos ao ponto forte do filme. De nada adiantaria o engajamento e a força da direção e do roteiro se não tivéssemos os veículos corretos para dar vida às vozes do Harlem neste filme. Gabourey Sidibe é a tradução física e psicológica de Preciosa. Seu trabalho é incrível, sobretudo para uma estreante. E incrível é o que se pode dizer também das interpretações em geral de “Preciosa”, passando inclusive por Lanny Karvitz e (pasmem!) Mariah Carey, com pequenas e notáveis participações, e chegando ao sublime em Mo´Nique como a mãe da protagonista. Sabe aquelas interpretações que você percebe a entrega da atriz ao personagem? Pois é isso que ela faz. Mo´Nique vive as pertubações de sua personagem com uma naturalidade extrema. Ela não opta pela saída fácil de criar uma mãe-monstro, uma caricatura da maldade, e faz uma mulher cruel porque é fraca, egoísta e rude porque não sabe ser de outra forma. A mãe de Preciosa acredita em suas verdades e por isso as suas ações. Mo`Nique acredita em sua personagem e por isso o trabalho é tão intenso.
FotografiaApesar do diretor não utilizar a fotografia como um trunfo da direção, ela tem um papel importante para ambientar todos no mundo do Harlem e seus personagens desgraçados. Os tons são cinza e pastel sempre, deixando claro que o lado B do american way life não tem muito brilho. Andrew Dunn é responsável pela fotografia e faz neste filme o mesmo que fez em “Assassinato em Gosford Park” de Robert Altman, elabora a imagem a partir dos atores. A fotografia dá continuação a movimentação dos personagens. No filme de Robert Altman, ele expandia a elegância de Helen Mirren pelo resto da tela, aqui em “Preciosa” ele deixa a dor e a desordem íntima de Gabourey e Mo´Nique se confundirem com o underground do bairro em que vivem.
Figurino
Não conheço bem o trabalho anterior de Marina Draghici, a responsável pelo look de Preciosa e companhia, mas confesso que gostei muito do que vi. Considero difícil criar um figurino com personalidade para um filme contemporâneo, mas percebi muita adequação ao visual Harlem neste trabalho. Couro e streetwear não poderiam faltar, mas intercalados com momentos quase non-sense, fazem um conjunto interessante de composições. Ou ninguém reparou naquele macacão do cotton estampado que Mo`Nique usa enquanto dança em frente a TV? O que é aquilo, gente? Non-sense demais. Sem falar que, embora seja um elemento complementar em quase todo o filme, o figurino adquire função na narrativa quando o cachecol vermelho de Preciosa é entregue de presente para sua vizinha, uma garota indefesa e sofredora, como se Preciosa estivesse resolvido não mais carregar o fardo da vida que levava e passar a vez para a próxima infeliz. Lembram disso? Bem simbólico, não acham? Um ato de libertação e auto-reconhecimento na dor do outro. E em vermelho sangue, Valentino, gostei muito disso.
É isto.
Até a próxima sessão em partes!
Tenho que assumir que eles fazem esse cinema “sujinho” muito bem, todos os filmes citados acima estão entre os melhores dos últimos anos. E eu os chamo aqui de “sujinhos” porque eles dispensam aqueles cenários e personagens limpos e certinhos das comédias românticas e os heróis destemidos dos blockbusters e se dedicam a tipos mais humanos, deslocados e reais, na verdade, anti-heróis da nossa sociedade, personagens que nos cativam não por serem exemplos irreparáveis de ética e postura, mas pela forma que enfrentam as condições da vida e se superam, como a menina gordinha de “Pequena missa sunshine”, a adolescente bem resolvida com pais despreparados de “Juno” e a infeliz e sofredora garota de “Preciosa”.
“Preciosa” é um daqueles filmes que você termina pensando: “ah, como minha vida é maravilhiosa!” tamanhas são as desgraças que existem na vida da adolescente Preciosa.Basta adiantar aqui que além de ser miserável, obesa e analfabeta aos 17 anos, ela ainda é molestada pelo pai que lhe gera dois filhos, e sua mãe, ao invés de ajudá-la, a maltrata e cria uma relação baseada em ciúme e opressão.
Mas, como combinado, vamos em partes:
Direção:Lee Daniels é uma das figuras mais fortes do cinema negro norte americano. Tem uma postura quase militante quanto as questões que envolvem as minorias negras e “Preciosa” pode ser entendido como sua obra-prima no que se refere ao tema “minoria negra oprimida na América”. Antes disso ele só dirigiu um filme, chamado “Matadores de aluguel” , que não teve muita expressão e eu nem sequer assisti. Mas produziu “A última ceia” de Marc Forster que rendeu o Oscar de atriz a uma mulher negra pela primeita vez na história, Halle Berry.
Em “Preciosa”, ele se utiliza de todos os elementos do estilo filme de gueto, incluindo o ambiente decadente e marginalizado e as gírias excessivas dos negros. Mas tudo com coerência,uma vez que o filme tem esse caráter de manifesto, de denúncia ao establishment. Ele mantém um tom documentarista, uma câmera que se aproxima e se afasta do personagens como se estivesse tentando encontrar o melhor modo de captá-los, sejam eles os negros do Harlem ou os assistentes sociais e educadores. Lee deixa espaço para os atores fazerem o que precisa ser feito, não recheia a tela de imagens desnecessárias e panfletárias, não explora demasiadamente a fotografia, deixando a narrativa enxuta, sem frivolidades. Acho isso muito positivo e gosto particularmente de como ele estabelece o paralelo entre a realidade dura da protagonista e suas fantasias, como ser uma loira perfeita no espelho ou uma celebridade em seus sonhos. E desgosto daquela auto-projeção que ela faz dentro de um filme italiano. Que bobo aquilo, não acrescenta nada e fica meio piegas.
Roteiro
A história é baseada no livro “Push” da poetisa Saphire, baseado em fatos reais presenciados por ela em instituições sociais americanas. A partir disso, o roteiro de Geoffrey Fletcher parece cumprir seu intuito que, mais que mostrar a condição dos negros pobres nos EUA, como enfatiza o diretor, tenta deflagrar a condição ineficiente da assistência social do país e ilustrar a alienação moral que a sociedade se encontra, com mães psicóticas em frente a TV e adolescentes que acreditam em fama e red carpet como salvação da vida. O roteiro não poupa o espectador, é cruel, ríspido e não cai no melodrama barato. O texto é rico de sentimentos, evita chavões e clichês e consegue seu objetivo que é dar uma alerta geral para o que existe por trás da beleza americana e ainda deixar a todos com uma sensação de nojo e repúdio ao sistema. Muito bom.
ElencoChegamos ao ponto forte do filme. De nada adiantaria o engajamento e a força da direção e do roteiro se não tivéssemos os veículos corretos para dar vida às vozes do Harlem neste filme. Gabourey Sidibe é a tradução física e psicológica de Preciosa. Seu trabalho é incrível, sobretudo para uma estreante. E incrível é o que se pode dizer também das interpretações em geral de “Preciosa”, passando inclusive por Lanny Karvitz e (pasmem!) Mariah Carey, com pequenas e notáveis participações, e chegando ao sublime em Mo´Nique como a mãe da protagonista. Sabe aquelas interpretações que você percebe a entrega da atriz ao personagem? Pois é isso que ela faz. Mo´Nique vive as pertubações de sua personagem com uma naturalidade extrema. Ela não opta pela saída fácil de criar uma mãe-monstro, uma caricatura da maldade, e faz uma mulher cruel porque é fraca, egoísta e rude porque não sabe ser de outra forma. A mãe de Preciosa acredita em suas verdades e por isso as suas ações. Mo`Nique acredita em sua personagem e por isso o trabalho é tão intenso.
FotografiaApesar do diretor não utilizar a fotografia como um trunfo da direção, ela tem um papel importante para ambientar todos no mundo do Harlem e seus personagens desgraçados. Os tons são cinza e pastel sempre, deixando claro que o lado B do american way life não tem muito brilho. Andrew Dunn é responsável pela fotografia e faz neste filme o mesmo que fez em “Assassinato em Gosford Park” de Robert Altman, elabora a imagem a partir dos atores. A fotografia dá continuação a movimentação dos personagens. No filme de Robert Altman, ele expandia a elegância de Helen Mirren pelo resto da tela, aqui em “Preciosa” ele deixa a dor e a desordem íntima de Gabourey e Mo´Nique se confundirem com o underground do bairro em que vivem.
Figurino
Não conheço bem o trabalho anterior de Marina Draghici, a responsável pelo look de Preciosa e companhia, mas confesso que gostei muito do que vi. Considero difícil criar um figurino com personalidade para um filme contemporâneo, mas percebi muita adequação ao visual Harlem neste trabalho. Couro e streetwear não poderiam faltar, mas intercalados com momentos quase non-sense, fazem um conjunto interessante de composições. Ou ninguém reparou naquele macacão do cotton estampado que Mo`Nique usa enquanto dança em frente a TV? O que é aquilo, gente? Non-sense demais. Sem falar que, embora seja um elemento complementar em quase todo o filme, o figurino adquire função na narrativa quando o cachecol vermelho de Preciosa é entregue de presente para sua vizinha, uma garota indefesa e sofredora, como se Preciosa estivesse resolvido não mais carregar o fardo da vida que levava e passar a vez para a próxima infeliz. Lembram disso? Bem simbólico, não acham? Um ato de libertação e auto-reconhecimento na dor do outro. E em vermelho sangue, Valentino, gostei muito disso.
É isto.
Até a próxima sessão em partes!
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